Memória colectiva
Dentro de dias comemora-se a Implantação da República. Acho bem. A sério...não sou monárquico, embora as razões para se ter mudado de regime nunca me tivessem sido claras. A Monarquia estava decrépita, vivia de lazer à custa de um povo a quem tinha como inferior. A casa real (assim, sem maiúsculas) considerava-se socialmente superior. Nada o meu ponto de vista, mas não vou discutir isso. Acrescento apenas que valor, superioridade, para mim, têm pessoas fantásticas, com sensibilidade e sentimos genuínos. Pessoas que se fizeram na vida, sem culpar outros, progenitores principalmente, mas antes agradecem todos os dias aos que os trouxeram ao mundo, no reconhecimento, que me toca e comove, muito humano. Gosto de gente "humana" e detesto superioridades de sangue. Mas a queda da casa real, não foi um processo normal, porque inquinado do veneno da Carbonária e Maçonaria.
Antes de prosseguir, devo fazer uma declaração. Quem me lê deve identificar uma aversão animal à Maçonaria. Mas não. Respeito, integralmente, qualquer fé, mesmo que não professe alguma. Desde que o seja. Fé é uma forma de amor. Acreditar, confiar, sentir suporte em alguém, neste caso, numa entidade superior, seja Deus, seja o Arquitecto. O que condeno e abomino, mesmo assim (!), é uma Maçonaria feita de tráfico de influências, com perversas intenções, com propósito de apoio num grupo, para, sem mérito provado, subir na carreia e na escala social. Não sobem, descem.
Um povo deve ter uma memória que respeite. Comemorar o 5 de Outubro pela República, sendo republicanos, ou aceitando o regime de forma tácita, está bem. Correcto. Mas, com isso, fazer esquecer o dia do Tratado que reconheceu a nacionalidade portuguesa, parece-me muito mal. 5 de Outubro é o dia do Tratado de Zamora. Ignorar, porque assim se reescreveu a História, à luz do que tantas vezes se pretendeu, já depois de 1974, é ignóbil e uma continuidade atroz da ignorância de um povo antigo e respeitável.
Não sou nacionalista convicto ou, pelo menos, fanático. Mas gosto de ser português e orgulho-me de o ser. Não aprecio é um nacionalismo saloio e anacrónico, pois sê-lo, português orgulhoso, deve ser suportado e construído, a meu ver. Estou desgostoso com o estado do meu país, mas não deixo de o amar. É o país dos meus pais e avós. O país dos meus filhos e dos meus mais queridos. Conheci e cultivo neste Portugal, hoje tão deprimido, amizades de que me orgulho imenso. Com que tanto aprendi. Aprendi a amar no meu país, com mulheres portuguesas. Aprendi a ser pai aqui. E antes tinha aprendido a ser filho, coisa que também nos exige esforço e aprendizagem, para além de orgulhos e defesas individuais, para além de vaidades e convicções. Aprendi a humildade com os meus pais e, mais tarde, com excelentes amigos. Com gente fantástica e a transbordar de humanismo e sentimentos. Adoro as pessoas que me acompanham pela vida, todas a que o sabem, todas as mencionadas.
Mas estranho. Aristóteles dizia, numa afirmação que nem sempre foi entendida, que somos felizes na Polis, apenas. Através dela. E sem ela, no raciocínio grego filosófico, não o seremos. Penso que hoje sabemos bem o significado do que este homem superior queria transmitir. Não somos gente sozinhos. Precisamos de todos os nossos entes mais queridos, os que connosco nascem e crescem, os que vamos escolhendo, os que nos escolhem. E que nos fazem saber o que significa sermos gente e termos sentimento. Mas toda a sociedade é nossa discente. Todos aprendemos, constantemente, hoje com um ritmo alucinante, pela informação que vamos consumindo. O que, o nosso dia sem ela, nos deixa mais pobres, desiguais dos outros. Para sentirmos o pulsar da Polis, temos de acompanhar o seu quotidiano. Alguém inteligente que muito admiro e me é muito querido, me lembrou isto mesmo. É bem verdade.
Para sermos felizes precisamos dos outros. O tempo do isolamento, ou o espaço, num regime de transcendência budista, não está ao alcance de todos. É um esforço imenso, num ambiente que não dominamos. E tem o seu reverso. O budismo confessa-se pessimista ao considerar dogmático que toda a vida é sofrimento. Confesso a minha dificuldade em aceitar este quadro.
Para sermos felizes e sermos um povo respeitável e respeitado, a memória do que somos é essencial. Vivemos o tempo descrito por Churchill, mas em navegação à vista: vivemos os nossos "sangue, suor e lágrimas". O que nos devia unir. E termos respeito por nós mesmos, começando pela nossa História e vivendo-a, de forma activa. Não culpo o meu povo pelo que é, pelo que fizeram dele, de nós, pela mesma razão que não o faria em relação aos meus pais. Mas não o culpar não o iliba de se assumir, hoje, pelo que faz, ou pelo que devia fazer.
Não sendo um nacionalista, nem um tradicionalista, entendo que uma memória colectiva é essencial. Refiro-me ao respeito pela construção, esforçada, da nossa identidade. Da nossa nacionalidade. Refiro-me ao esforço individual, no respeito pela nossa ancestralidade e longevidade como povo. Nesse respeito, devíamos cuidar de nós, começando pela cultura, e pelo mais básico: os símbolos da nossa identificação. Há trezentos anos não havia Direita ou Esquerda, mas sim uns mais conservadores e defensores das tradições, outros mais propensos a romper com os conceitos e visão daqueles. Hoje não é diferente, mas a secessão pseudo-idelógica interessa a muita gente. Preguiça intelectual, gosto de lhe chamar. Nunca conseguir ver alguém de esquerda na rua, nem de direita. Nem numa conversa. Mas, tal como nas reuniões em ambiente empresarial, sempre houve e haverá pontos de vista diversos, para bem comum. Isso não nos faz mais ou menos rosa, ou vermelhos, ou laranjas. As opções concretas, sim, fazem-nos divergir, mas não inimigos. Somos do mesmo povo. E é desse respeito, ancestralmente determinado, que falo.
Mais. Refiro-me a um respeito por uma cultura que outrora foi nossa. E que mesmo intrusando, como sempre bem fizemos, outras culturas, num multiculturalismo por nós fundado, numa globalização inventada por Portugal (leia-se "The First Global Village", de Martin Page, um jornalista inglês correspondente em Portugal), não devíamos permitir que os perversos costumes de hoje nos adulterassem. Consumo, absentismo social, ausência de capacidade crítica na política, na cultura, na sociedade.
Tudo o que virmos de bom fora de nós, devemos reescrever e traduzir em formato português. Nada deve ser importado como modelo compatível connosco, povo antigo e respeitável.
Não esqueçamos os "memes", unidade básica cultural, equivalente social aos genes, transmitidos inter e intra-geracionalmente. E o conjunto, a visão global, transmitida entre gerações, que nos torna distintos de todos os outros povos. Mas isso não chega. É preciso viver essa diferença, no respeito multicultural referido, em que Portugal tem sido exemplar ao longo da História.
A memória colectiva do nosso povo deve ser respeitada e vivida. Nós somos os nossos Reis, os nosso políticos, os nosso empresários, somos os nossos grandiosos anónimos, que mais valor têm que todos os que a História testemunha. Somos o João, a Maria, a Paula, o Afonso...e todos os milhões que deixaram e deixam marcas em todos nós.
Somos, mas apenas o que genuinamente somos. Não seremos as mentiras e omissões da História. Soares será " o pai da Democracia", imerecidamente. Nunca será o destrambelhado activista, sem nexo e ressabiado, cuja fidelidade a um clube sem inteligência e sem projecto, e muito promiscuo, é mais importante que a sua coerência com o epíteto de paizinho. Cavaco, provavelmente só entrará na História de Citröen. Sócrates, como o falso grego, que nada tem a ver com esse grande vulto, mas com a menoridade que o equipara. Mas os fiéis historiadores de serviço, apagarão a sua pegada miserável, e o engrandecerão. A História, memória colectiva escrita e muito tendenciosa tem esta fraqueza, ideologicamente datada. Mas os íntegros e de espírito crítico independente, saberão sempre dar o valor devido à verdade, à falsidade e à omissão. A memória colectiva perdurará para além de qualquer historiador ideologicamente comprometido. Há sempre uma verdade por detrás de uma cortina de mentira nebulosa.
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