Schwäbisch Hall
Em 1993 estive na Alemanha, a estudar, privilégio que me foi oferecido pela empresa em que na altura trabalhava: Schwäbisch Hall.
Schwäbisch Hall a nordeste de Stuttgart, é uma cidade medieval lindíssima, banhada por um rio, com pontes fechadas em madeira, que foi poupada na Segunda Guerra Mundial. Diziam-me que era estranho ir aprender alemão numa região onde se fala Schwäbisch, Suábio, por todo o lado. Mas no Goethe Institut, com aulas matinais intensivas e estudo toda a tarde até quase ao jantar, o resultado foi surpreendente e muito compensador. Esse foi um tempo extremamente produtivo e vivido minuto a minuto com muita intensidade. Um tempo-esponja, em que se absorvia os conhecimentos com um prazer e vontade incomparáveis. Mas esse prazer pelo conhecimento, pela aprendizagem e pela evolução, acompanhando sempre o meu tempo, ainda hoje o mantenho bem activo.
Mas nessa cidade vivi também momentos de contradição. As saudades da minha única filha da altura, que tinha apenas meses, e ouvia os seus ruidinhos e risos ao telefone com o peito apertado e a lágrima quase a cair... A saudade de casa e dos amigos... a estranheza de um lugar novo e diferente, com uma língua que apenas havia começado a descodificar.
Isso tudo era vivido em contradição com os prazeres da cidade (ali mesmo na foto acima ficava uma varanda sobre o rio, onde costumava ir beber uma cerveja após estudar e antes do jantar sozinho ou não, mas geralmente só, pois os meus colegas não tinha o meu privilégio de despesas todas pagas...e onde com o sol a dar-me na cara, uma bela Warsteiner 'loirinha', e um pensamento a adivinhar o futuro me davam a certeza de um dia... eu vir a ser muito feliz...) e da avidez de conhecer novas gentes e formas de vida, de pensar e de comunicar. Uma nova mentalidade. Que era precisamente o que pretendia a empresa para a qual eu trabalhava. Tudo acontecia com muita rapidez e era extremamente rico, a cada momento e cada pessoa uma nova experiência e aprendizagem. Mas na Alemanha, o pragmatismo do dia a dia é bem outro. Não se perde tempo com nada. Essa foi a minha grande escola na vida que hoje, bem mais custos me dá, do que vantagens, visto viver onde vivo...
Fiquei alojado numa casa particular, uma bela vivenda. Um casal idoso, ele de oitenta e três anos nessa altura (nunca mais soube deles...já será falecido, pois) ela de menos vinte. Precisamente menos vinte. Um casal doce e amigo, muito informados e extremamente desafogados financeiramente. Não necessitavam de alugar quartos para viverem bem. Ele havia sido aviador quase toda a sua vida e nessa época era proprietário de uma empresa que fabricava máquinas para o sector da construção civil, gerida pelos seus filhos. Havia estado na Guerra da Crimeia, em Goa ainda portuguesa, onde tinha tido contactos com portugueses...aquele homem era uma enciclopédia viva e ao mesmo tempo uma humildade e humanismo exemplares. Era o avô que muitos querem ter.
Todos os dias de manhã tinha aulas, muito intensivas e exigentes. A tarde era inteirinha a estudar, a minha sede de saber e aprender!!! Ao fim da tarde descia a pé pelo bosque denso e fantástico até ao cento da cidade. Invariavelmente jantava sozinho. Por vezes convidava um colega, um deles ainda hoje um amigo, era conselheiro do Presidente da República da Lituânia. Arvydas é um bom amigo e gostaria de saber mais dele (as saudades desse e doutros amigos pelo mundo...). O seu alemão era na altura muito incipiente e eu ajudava-o a estudar, visto estar dois níveis à sua frente. A ele, custava-lhe ver os preços de tudo naquela terra, onde uma camisa custava o mesmo do que um fato feito por medida, no mesmo alfaiate do seu Presidente, dizia. Mas em geral eu jantava sozinho, livro debaixo do braço, hábito solitário que ainda hoje mantenho. Ia a gregos, italianos, alemães, bávaros, jusgoslavos a tudo o que a cidade pequena tinha para oferecer. Quando não jantava em casa, e depois ia passear chovesse ou não. Passear e pensar, um dos meus passatempos de eleição.
Herr Kopietz, da casa onde vivi, foi um prazer para os meus ouvidos, sedentos de novas experiências e histórias.
Nos meses em que lá vivi, como um príncipe, tendo o piso superior da vivenda por minha conta, com uma sala de estar imensa, com uma varanda em madeira, mas numa vivenda muito moderna, cheia de flores em floreiras, uma sala cheia de luz, luxuosamente mobilada, uma cozinha equipada, exclusiva para mim, enfim...nesses meses, todos os fins de semana havia visitas ao casal. Amigos e família traziam ali outras experiências mais e novas simpatias. À frente de um grande grupo de amigos eu era a curiosidade deles, uma autêntica comissão de inquérito queria saber tudo do meu país. No início, bem que me custava em alemão...
Desde esse tempo, quando me dizem que os alemães não são muito simpáticos ou são frios, ou até são pouco democráticos só me apetece contar da minha experiência, que contradiz todas essas ideias feitas e totalmente enganadoras.
Tendo felizmente já viajado um pouco por todo o mundo, sei bem que nunca conheci um povo tão informado, culto e interessado como o alemão. Se há povo de quem posso dizer ser democrata e participativo na vida comunitária, social e nacional, esse é sem dúvida o alemão.
Kopietz era um senhor de oitenta e três que levava dois livros para a sua mesa de jardim. Terminava um e logo iniciava outro. Tinha sempre um sorriso amável e os braços abertos. Tinha um problema cardíaco grave e cortava a relva do seu jardim. Na Alemanha, nunca vi, em vivendas muito ricas e de gente com elevada posição social, alguém deixar a manutenção do jardim para uma empresa. O tempo de convívio e prazer no jardim, onde a família repartia as tarefas, e entretanto brincava e convivia, deu-me a ideia muito sólida da diferença no prazer pela vida e pela afirmação da alegria e boa disposição que não consigo, com facilidade, identificar no meu próprio país.
Sempre vi mais flores e ruas limpas e arranjadas do que alguma vez em Portugal. E nem se tratando de cidades turísticas. Gostam de ter bom ambiente e respeitam-no, para si mesmos. E aos fins de tarde de Primavera, sempre que o clima o permite, pois naquela região as chivas concentram-se em Junho e Julho, todo o mundo está nos jardins e convivem e fazem festas de todo o tipo. Qualquer janela de bom tempo é para ser aproveitada.
Tanto se convive com festas populares, onde o folclore não é enjeitado por ninguém, mas por todos apreciado como coisa sua e tradição a manter (e eu com tradições, tacitamente aceites, enfim...), como se acorre a um espectáculo de música clássica, onde está toda a gente, novos e velhos.
O povo alemão vive cada momento o melhor que sabe e pode, e não vive de passados mais ou menos gloriosos mas tristes, porque já lá foram. Eu não gosto de viver a nostalgia de tempos passados, nem dos meus, mas há momentos que me fazem pensar e lembrar o melhor que, até hoje, a vida me deu.
E nós portugueses, como somos se na rua quase nem sorrisos vejo...?
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