Sob a copa das anoneiras
Há árvores que nos dizem mais do que outras, nos impressionam pela sua dimensão, pela forma da copa, do que ela abraça. Imagino, como li em Steinbeck, a copa de um enorme carvalho, que é de facto uma bela árvore, um verde límpido e vivo, luminoso aos raid de sol que tentam penetrar.
Uma anoneira grande, de muitos anos, é uma árvore imponente, Não tem o belo de um carvalho nas suas folhas, ou tronco. Mas no verão, os muito poucos raios de sol que se aventuram a chegar ao solo, após ultrapassarem a densidade das suas folhas, ganham um valor especial, e constroem uma teia de pequenas pérolas luminosas, para quem está deitado no solo a admirar tal espectáculo. Também nos oferece um aroma que poucos outros seres vegetais têm possibilidade.
Era debaixo de anoneiras que os meus pensamentos, as minhas leituras também, ganhavam a serenidade que esses dias de criação de um mundo que eu ainda não sabia existir, tomavam forma e corpo.
Mas numa dessas tardes, a minha avó passava por baixo de uma copa densa de uma das suas enormes anoneiras que ela tanto amava, e tropeçou num baixo murete, pequena fronteira entre um caminho de cimento recto que começava no portão da casa e terminava no fundo do nosso quintal. Caiu e fracturou umas costelas. Na altura, a fractura ainda não lhe retirara o génio e energia que nos oferecia quotidianamente. Dias depois, porém, tudo se começou a alterar, quando nos demos conta da razão da queda ter já sido um AVC que a veio a deixar agarrada ao seu quarto, definhando pouco a pouco.
Os meus avós eram os donos da casa. Uma casa grande, com quartos enormes. O dos meus avós era um quarto onde tudo cabia, para além da cama, uma mesa central e cadeiras, um sofá (canapé), um grande tapete, imitação persa, na parede, dois grandes roupeiros, e duas mesas e toucadores. O espaço entre tudo isto era um outro quarto à dimensão de hoje. Aquele quarto e o dos meus pais, seriam hoje um apartamento, no mínimo. Mas o espaço do quarto dos meus avós, seria pequeno para os últimos dias do fim da sua vida, viera eu a perceber mais tarde.
A minha avó era uma mulher inteligente, de carácter muito difícil e temperamento duro, ríspido. Levei anos a perceber porque era ela assim. E quando acho ter percebido, dei-me conta de que ela tinha sido uma influência decisiva na minha vida, nem sempre pelas melhores coisas, mas também por elas. Não era uma mulher de cultura, das que lêem livros aos netos, mas tinha sido professora primária e com ela aprendi a ler e a fazer contas, ainda antes de iniciar a escola. E eu era, afinal, o neto predilecto. Sem saber porquê. Já nessa idade eu me deixava agarrar a quem se agarrava a mim? Talvez.
Quando ela se deixou abater e o efeito do acidente vascular que sofrera a foi deteriorando, a consciência das pessoas que a rodeavam também nos revelou outra pessoa. A dada altura não reconhecia a sua filha, minha mãe, que cuidava dela diariamente, e um pouco apenas o próprio marido. Mas chamava por mim, e de mim aceitava que lhe desse a sopa. O que me comovia mas também me enchia de orgulho. Deixava-me triste que a minha avó não reconhecesse a filha que até a sua vida profissional transformara anos antes, por ela. Também me deixava triste ver a sua albergai inesgotável desaparecer, ter-se transformado numa mulher quase doce, com muito de infantil. Mas apreciava aquele reconhecimento direccionado a mim.
A minha avó Maria Bela, era diferente de todos nós. Tinha cabelo claro, olhos claros, uma cara redonda, e um estilo nervoso de tudo fazer e estar na vida. Era muito enérgica e super autoritária. Mais tarde, muito anos depois, acho ter percebido porque ela era assim. Eu não gostava da sua forma de ser autoritária, pois não gosto mesmo de gente assim.
Mas ela sentia-se diferente. E, em parte, teria as suas razões. Era uma mulher que aos olhos da época, tinha muita independência, e falo da de pensar, não outra. Só no tocante a política ela não pensaria por si mesma, pois admirava Salazar, o que quando percebi, após 1974, detestei. Chamava-nos, ao meu pai e aos seus três netos, comunistas. Coisa que nunca fomos. Ela sentia-se porém, uma pessoa distinta e distante de quase todas as que a rodeavam. Por ser rigorosa e exigente com quase tudo. Tinha sempre roupa muito actual, impecavelmente limpa e passada. Em casa, tudo tinha de estar sempre limpo e muito arrumado. Talvez por isso eu ainda aprecie um quê de desarrumação em alguns objectos, como livros.
Quando, meses após o seu acidente no quintal, a minha avó partiu, uma boa parte do meu mundo de então também se foi e eu não me apercebi. Foi a primeira pessoa desse mundo a deixar de estar no meu. Foi o meu primeiro grande confronto com a perda, e com a tristeza. A de ter consciência que há pessoas que não voltam mais.
Acho que nesse dia, em que eu era ainda muito jovem, estava no meu sexto ano de Liceu, ou sétimo, já nem sei bem. o meu mundo de facto mudou mais do que eu esperaria.
E lembro-me ainda hoje, que essas anoneiras eram dela. As árvores e sombra que ela tanto amava. Nessas anoneiras enormes eu e os meus irmãos fizémos “cabanas” para as nossas aventuras, com tábuas pregadas nos seus troncos, lá bem no alto, o que deixou a minha avó numa fúria de referência para nós.
A essas árvores não posso deixar de associar a minha avó Bela, uma mulher de mau génio, mas uma mulher inteligente que marcou para sempre a minha infância, até por ter sido a primeira de todos a partir e me ter dado conta do que é a morte, para os que ficam.
Uma anoneira grande, de muitos anos, é uma árvore imponente, Não tem o belo de um carvalho nas suas folhas, ou tronco. Mas no verão, os muito poucos raios de sol que se aventuram a chegar ao solo, após ultrapassarem a densidade das suas folhas, ganham um valor especial, e constroem uma teia de pequenas pérolas luminosas, para quem está deitado no solo a admirar tal espectáculo. Também nos oferece um aroma que poucos outros seres vegetais têm possibilidade.
Era debaixo de anoneiras que os meus pensamentos, as minhas leituras também, ganhavam a serenidade que esses dias de criação de um mundo que eu ainda não sabia existir, tomavam forma e corpo.
Mas numa dessas tardes, a minha avó passava por baixo de uma copa densa de uma das suas enormes anoneiras que ela tanto amava, e tropeçou num baixo murete, pequena fronteira entre um caminho de cimento recto que começava no portão da casa e terminava no fundo do nosso quintal. Caiu e fracturou umas costelas. Na altura, a fractura ainda não lhe retirara o génio e energia que nos oferecia quotidianamente. Dias depois, porém, tudo se começou a alterar, quando nos demos conta da razão da queda ter já sido um AVC que a veio a deixar agarrada ao seu quarto, definhando pouco a pouco.
Os meus avós eram os donos da casa. Uma casa grande, com quartos enormes. O dos meus avós era um quarto onde tudo cabia, para além da cama, uma mesa central e cadeiras, um sofá (canapé), um grande tapete, imitação persa, na parede, dois grandes roupeiros, e duas mesas e toucadores. O espaço entre tudo isto era um outro quarto à dimensão de hoje. Aquele quarto e o dos meus pais, seriam hoje um apartamento, no mínimo. Mas o espaço do quarto dos meus avós, seria pequeno para os últimos dias do fim da sua vida, viera eu a perceber mais tarde.
A minha avó era uma mulher inteligente, de carácter muito difícil e temperamento duro, ríspido. Levei anos a perceber porque era ela assim. E quando acho ter percebido, dei-me conta de que ela tinha sido uma influência decisiva na minha vida, nem sempre pelas melhores coisas, mas também por elas. Não era uma mulher de cultura, das que lêem livros aos netos, mas tinha sido professora primária e com ela aprendi a ler e a fazer contas, ainda antes de iniciar a escola. E eu era, afinal, o neto predilecto. Sem saber porquê. Já nessa idade eu me deixava agarrar a quem se agarrava a mim? Talvez.
Quando ela se deixou abater e o efeito do acidente vascular que sofrera a foi deteriorando, a consciência das pessoas que a rodeavam também nos revelou outra pessoa. A dada altura não reconhecia a sua filha, minha mãe, que cuidava dela diariamente, e um pouco apenas o próprio marido. Mas chamava por mim, e de mim aceitava que lhe desse a sopa. O que me comovia mas também me enchia de orgulho. Deixava-me triste que a minha avó não reconhecesse a filha que até a sua vida profissional transformara anos antes, por ela. Também me deixava triste ver a sua albergai inesgotável desaparecer, ter-se transformado numa mulher quase doce, com muito de infantil. Mas apreciava aquele reconhecimento direccionado a mim.
A minha avó Maria Bela, era diferente de todos nós. Tinha cabelo claro, olhos claros, uma cara redonda, e um estilo nervoso de tudo fazer e estar na vida. Era muito enérgica e super autoritária. Mais tarde, muito anos depois, acho ter percebido porque ela era assim. Eu não gostava da sua forma de ser autoritária, pois não gosto mesmo de gente assim.
Mas ela sentia-se diferente. E, em parte, teria as suas razões. Era uma mulher que aos olhos da época, tinha muita independência, e falo da de pensar, não outra. Só no tocante a política ela não pensaria por si mesma, pois admirava Salazar, o que quando percebi, após 1974, detestei. Chamava-nos, ao meu pai e aos seus três netos, comunistas. Coisa que nunca fomos. Ela sentia-se porém, uma pessoa distinta e distante de quase todas as que a rodeavam. Por ser rigorosa e exigente com quase tudo. Tinha sempre roupa muito actual, impecavelmente limpa e passada. Em casa, tudo tinha de estar sempre limpo e muito arrumado. Talvez por isso eu ainda aprecie um quê de desarrumação em alguns objectos, como livros.
Quando, meses após o seu acidente no quintal, a minha avó partiu, uma boa parte do meu mundo de então também se foi e eu não me apercebi. Foi a primeira pessoa desse mundo a deixar de estar no meu. Foi o meu primeiro grande confronto com a perda, e com a tristeza. A de ter consciência que há pessoas que não voltam mais.
Acho que nesse dia, em que eu era ainda muito jovem, estava no meu sexto ano de Liceu, ou sétimo, já nem sei bem. o meu mundo de facto mudou mais do que eu esperaria.
E lembro-me ainda hoje, que essas anoneiras eram dela. As árvores e sombra que ela tanto amava. Nessas anoneiras enormes eu e os meus irmãos fizémos “cabanas” para as nossas aventuras, com tábuas pregadas nos seus troncos, lá bem no alto, o que deixou a minha avó numa fúria de referência para nós.
A essas árvores não posso deixar de associar a minha avó Bela, uma mulher de mau génio, mas uma mulher inteligente que marcou para sempre a minha infância, até por ter sido a primeira de todos a partir e me ter dado conta do que é a morte, para os que ficam.
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