Uma fracção apenas

Temos momentos e tantos momentos. Aquele em que tentamos gerir o ruído à nossa volta, da pressa automática e nervosa de tudo. Aquele em que não queremos ouvir nada do que nos parecem querer dizer, sem o querer, por quase gritarem num locar público, as suas vidas, as suas opiniões, desaforos, ou até as suas declarações de amor. Não é nosso, nem para nós e não queremos saber.

Só queríamos ter um espaço de silêncio para pensar, ou tentar inclusive a impossível ausência de pensamento.

Temos momentos em que o silêncio que até procurávamos nos é tão pesado, que tudo daríamos por um bocado de ruído dos outros. Temos momentos musicais. Temos momentos de assombro por alguém. Momentos de emoção e comoção. De auto-comiseração, sempre julgado ilícito por alguém. De altruísmo, puro ou maculado. De egoísmo saudável, ou condenável.

E temos tudo, em momentos, estanques ou confusos e entrelaçados. "I am a strange loop", escreveu Douglas Hofstadter. E somos todos, a vida toda.



Há sempre uma luz aí qualquer, que nos pode proteger de um ruído cansativo e desgastante.

O ruído pode vir de algo que não se realiza, e nos vai moendo. Ou de algo que se verifica e não aceitamos. Pode ser som, ou não ser mais do que um silêncio que nos ensurdece, como alguém o disse.

Mas essa luz pode revelar-se, e estarmos invisíveis a ela, ou opacos a que nos alcance. Mas há sempre momentos. E só precisamos de um único. Um só momento e tudo se transforma, e os ruídos já não nos alcançam mesmo quando os ouvimos bem ensurdecedores.

O lapso de tempo que nos leva a entender um momento único e diferenciador, que confio nos acontecer uma só vez, não por ser apenas único, mas por ser totalmente distinto e totalmente revelador e importante, é o que nos leva à compreensão dele. À sua percepção, aliás. A compreensão nem interessa que chegue, pois não estaremos de sentidos em alerta para o entendimento.

Uma fracção de luz e o momento já tudo mudou e nada mais será como antes. Mas não é uma luz qualquer. É a luz! E ninguém a viu mais, só uma vez foi avistada, tudo o mais depois é a sua intensidade a crescer, no que só quem a vislumbrou pode viver, esticar os sentidos e desenvolver-se nela até ao fim do tempo.



Não é luz de nos tornar tudo claro, mas de nos deixar confusos, aliás. Depois sim, seremos iluminados e guiados e nos deixaremos levar. Abre-se-nos numa fracção e não deve esvanecer nunca mais.

À nossa volta o ruído do mundo prossegue e já não queremos saber.

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