Mãos

Olhava as mãos como frequentemente fazia, como numa espécie de aquecimento, antes de começar a procurar as palavras, com que queria preencher espaços no papel. E, mais uma vez, não entendia, tinha de estudar este assunto. A transmissão de uma ideia, começava onde? Na percepção do mundo, provavelmente, muito antes de vir a saber sequer se alguma ideia lhe surgiria, se algum recanto novo de mundo podia fazer surgir, com a palavras. Reais ou não. Bem, reais são todas, o que traduzem é que pode não ser. Isso já pensava ter esclarecido.

Mas este processo... uma, duas, milhares de impressões, conscientes, ou subtis, inconscientes, e algo novo se geraria, ou a confirmação, repetição de algo já demasiado conhecido. Aquela janela ali, aquela luz filtrada, ajudariam. Era uma luz serena, redonda e doce, silenciosa, sem atropelos e ruídos obstaculizantes. Era a sua luz preferida, para pensar, ler e escrever. E, olhando as mãos magras, dedos esguios, pensava poder teclar melhor, com mais destreza, ou agarrar a palavra preferida. Mas isso eram parte das boas condições. Que lhe faltava? Tema? Ou as palavras se encarregavam de o encontrar? Normalmente, um resquício de ideia, um pequeno sinal, um empurrão do quotidiano, sem importância qualquer, se poderia traduzir num conjunto de palavras, que ao cair...esperava criar alguma magia, (como dizia Kipling "como uma pequena gota de tinta que ao cair numa folha, faz com que milhares de pessoas, talvez milhões pensem". Pretensão para grandes apenas... ) normalmente nunca surgindo. Como faziam os grandes? Inspiração ou trabalho? Teriam mãos mais hábeis, ou tudo lhes vinha da cabeça? Claro, da cabeça. De onde mais? Algures tinha lido sobre a formação das ideias, ou das decisões, que as ideias podiam gerar. Ora, escrever, sobre o que seja, seria a concretização de um processo decisório. Começava, recuando, na tal percepção do mundo, de uma parcela ínfima dele. Mais nada, mas isso era muito. Era, diziam os especialistas, a etapa mais importante do processo. De decisão. Por isso, também achava o  ter lido, noutro lugar de papel qualquer, que um bom escritor teria de ser antes de mais um bom observador. Algo como...observar sem subjectividade. Como se fosse possível. E, uma vez mais, exaustivamente mais, olhava as mãos, num paralelo entre o seu uso na escrita e na moldagem de cerâmica, na pintura de uma tela, nas carícias a um corpo feminino. Um uso inteligente sempre obrigava a uma dedicação exclusiva do momento. 

Moldar um corpo belo de uma mulher (ou uma mulher, o de um homem), fazendo por transmitir todas as sensações previamente vividas e guardadas, não era coisa qualquer. Era a suprema arte. E superava, tinha de ser, todas as outras. Transmitir todo um mundo, todas as sensações de uma experiência a outra, como se a primeira fosse, ou a última pudesse ser? Transmitir e receber. Quem, num cerrar de olhos, concentrar nas mãos toda a experiência de sensações incríveis, de exploração, de gravação do conhecimento de cada centímetro de um corpo, sentido e (muito) fazendo sentir, para a ver e a ter nas mãos um poder especial, um mundo todo por conhecer. As mãos num corpo são fisicamente o mesmo, mas sensorialmente muito distinta experiência da de um corpo nas mãos. Uma cara bela, ou uma cara que se vê bela entre as mãos, num afago único, todo sentido, todo protecção, todo ...é como querer agarrar num gesto apenas toda essa beleza que se vê, e não a deixar escapar. É uma das melhores e mais inesquecíveis artes de sentir com as mãos. E de transmitir, também, o que somos. Mas todo o contacto das nossas mãos com  um corpo se pode transformar, de um simples sentir físico a uma sensação profunda e incomparável. Afinal, um dos sentidos mais apurados, não sendo apenas a visão e audição, é o tacto. Mas o tacto deve ser ensinado, a nós mesmos e com a interação do que fazemos sentir a alguém. O que torna as nossas mãos algo mais do que um órgão, um membro, é o sentido que lhes damos. E isso é tanto nestas expressões sensoriais, quanto nas artes que elas conseguem elaborar. É uma evolução de algo aparentemente vulgar e vulgarizado. Usamo-las para quase tudo. Mas podemos aperfeiçoar o uso que lhes damos, ou o momento em que as transformamos num instrumento de sensações fortes, intensas e um extensão física fundamental de sentimentos. O toque num corpo, num momento de grande intimidade, num outro de forte sentimento, não é tão diferente como o uso numa criação artística. Mas, o que as torna únicas, às nossas mãos, é num toque corporal, a pessoa que possui o corpo que é tocado e sentido. Era isto também, era isto, acima de tudo. Acima de tudo.


E na escrita? Como se deviam comportar as mãos, após a dita percepção, assimilação e decisão executiva da acção. De escolha de uma palavra e não outra, de uma frase...e de um tema. Como o percorrer suavemente um doce corpo que merecia ser amado...cada milímetro implicava uma decisão, ali tomada em fracções ínfimas de tempo, e exigindo uma execução de rigor, mas de muita sensibilidade. E na escrita não? Claro que sim, mas a sensação lida, era bem outra. Não era sentido ao momento, mas era cheirada, lida e deglutida pela mente. Não escorregava algum descontrolo. Não exigia também, controlo. De nenhum, do autor, da escrita, que não dos toques de pele, esse sim um outro, que por uma vez se descontrolando controladamente, daria um eventual prazer maior.



E um pintor, o mesmo? O toque também era importante, a inclinação dele, a pressão, a intensidade, a largura do traço, fosse pincel, ou dedos. Talvez mais como o uso de um toque de pele na pele. Seguramente uma tela se aproximaria muito de um corpo de mulher. E começava sempre nua. Sem nada de história antes do primeiro toque, sem passado mas com todo o futuro por surgir. O processo criativo. Mas...bem! O toque, pelo menos o primeiro, e porque não todos se a inteligência suportasse o uso das mãos como era devido, todos os toques, por dias, semanas e anos...percorrendo um suave corpo de curvas animadoras, prometedoras...um toque que mudava em minutos, com a humidade da pele a dar novas sensações, o aroma...esse fantástico odor, pelas narinas entrando, mas deixando memória nas mãos...não eram arte, sem passado, mas com todo o futuro pela frente? Nem que o futuro durasse minutos. Era futuro e era uma delícia de futuro. Era arte. De quem dava e de quem recebia. No receber, havia imensa arte. Nunca se repetindo de corpo para corpo, ainda que as mãos fossem as mesmas.

Mas o tema era escrita. E escrita seria. Num papel, numa tela, ou num maravilhoso corpo feito ao milímetro para exigir que as mãos que o tocassem se superassem. A todas as vezes. Como numa arte gráfica, ou cénica. De cada vez...um mundo quase todo novo, ou inteiramente.

Tocar era assim algo que muitos descuravam, mas era essencial. Saber transmitir. O que o cérebro, mais consciente, mais descontrolado lhes diga. Por isso as olhava para as preparar, a cada momento da arte que se lhe apresentasse. Era um desígnio. Uma sabedoria que se ia construindo e crescendo, nunca sozinho. Era a tela, o papel, a cerâmica, uma delícia culinária, um gesto desportivo, um toque de amor num corpo de mulher. Deixando as suas palavras nessa pele, gravadas. Ninguém as apagaria.

Seria pretensioso ansiar que, como Kipling, cada toque, numa tecla, pela tinta ao tocar no papel, pelo crayon de pastel ao escorregar na tela, pela moldagem sensual da cerâmica, pelas sensações transmitidas a um corpo...contivessem e despertassem essa mesma magia? De sentir e fazer pensar?

Por elas, mãos, se pode transmitir uma mensagem de paz, de amor, de serenidade de apenas...exaltação do melhor de um ser humano, despido de preconceitos, nu para novas criações.


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