Lembro-me

Lembro-me, acho que me lembro, de há muitos anos pretender programar a fase tranquila da minha vida. Digo tranquila, mas também me lembro que na altura a projectava como a minha Liberdade individual. 

Seria, tem de ser, aqueles anos em que não temos de dar justificações dentro de uma empresa, ou a clientes ou utentes de uma empresa ou serviço. 

Sempre achei, desde muito cedo, talvez desde que me recordo de começar a ler, a ler a sério, ou a preocupar-me em ler coisas "sérias", que a Liberdade tem de fazer parte de, no mínimo, uma fase das nossas vidas. Aquela fase em que lemos, passeamos, amamos em voz alta ou em segredo, temos filhos que já pouco nos procuram como referência ou apoio, ou conselheiros, aquela fase, esta, em que nem é por acharmos que temos direito a dizer o que nos apetece (coisa não tão importante assim), mas em que sentimos que respiramos. 

Respiramos e continuamos a aprender, tudo o que afinal nem tivemos tempo antes. É também a fase da Criação. Criamos, se nos sentirmos bem, interiormente bem, com aquela paz no peito, o respirar leve e tranquilo, fisicamente, ou criamos dentro, bem só para nós. Mas essa Criação é uma Liberdade merecida.

Como disse, amamos os que nos são queridos, e longe ou perto, a força é a mesma, ainda que o toque nos falte. Amamos pessoas e coisas, ou seja, pensamentos. Amamos o que fizemos e libertamo-nos do que já não iremos fazer. Porque o tempo, neste tempo, é precioso, é doce e ligeiro, como ligeira a Liberdade que nos demos a nós mesmos.

A terceira fase da vida, como lhe chamo, devia dar-nos tudo (exagero, mas uma simples força de expressão, porque Tudo não existe, pelo menos neste espaço exíguo do planeta, ou num tempo, nu lapso de muitos ou poucos anos), mas se nos der já um carinho ou amor, mesmo distante e, seguramente, dos que estão perto.

E essas leituras tão adiadas. Esses textos e pensamentos transcritos tão prometidos e adiados. Essas pinturas que, boas ou más, nos ocupam o tempo com algo nunca antes feito? Essas conversas, com um carinho ou um amor sem medos? 

O Terceiro Tempo da nossa vida pode ser a promessa de sermos muito mais nós mesmos, do que antes nos foi permitido. 

Afinal, há tanto para se viver, porque o tempo e o espaço quando nos sentimos mais livres é incomparavelmente mais vasto e, sobretudo, mais vivo, e mais intenso, logo, mais vivido.



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