Silêncio
Jozef Stefanka
Saíam uns sons, arrumados, espalmados pelas cordas do seu violoncelo francês. Eram notas afinadas e não sons sem cor alguma. Um choro de música, que lhe saía sem controlo seu. Se se balançava ao ritmo da música de Dvorák, a que tanto gostava de dar vida, ouvia-se outro som, ruído. Rangido de madeira velha. Seca e velha, como ele já se ia sentindo, do desgosto. Tocava só, tão só como aquele choro de Dvorák. Os dois lamentavam-se e iam seguindo juntos. Agora, porém surgia uma outra coisa, um outro ruído. Quase se irritava, mas nem teve tempo, pois já a porta se abria, como se alguma vez se tivesse fechado de verdade. A sombra que, disforme se esticava naquele soalho antigo e gasto era inesperada, porque diminuta. Pelo menos assim lhe parecia, ou era do transe sempre que lhe induzia que interpretava.
Penetrando no silêncio súbito que se fez no seu quarto, uma linda menina de pele branca e cabelo dourado, provocou-lhe um quase calafrio. Não pelo que a rapariga podia representar, mas porque algo lhe recordava, e isso vinha de muito, muito distante. No tempo.
Num lapso insensível de recordação, uma imagem da sua Praga tão distante. Tão recuada no tempo. Seriam já quantos anos? E quem era essa menina, que tal reflexo indesejado lhe havia provocado?
"Desculpe, assustei-o? Incomodo?" Que nada disso. Era não sabia o quê. Talvez só do transe interrompido. "Entre. Entra!" Quase seco e brusco, do que, no mesmo instante, se arrependeu. Um professor de música tem sempre de ser mais condescendente com crianças. Firme mas sem impulsividade.
"Posso entrar, ou venho mais tarde? O senhor é o professor Vlada, não é?" Sem resposta, dado ainda o relativo choque causado pela entrada súbita, ela prosseguiu. "Disseram-me lá em baixo, uma senhora, que o senhor estava aqui, no quarto andar."
"Sou, mas não recebo aqui ninguém...normalmente. Porque vens aqui, como te chamas" Agora queria perguntar tudo sem parar, procurando um ponto de apoio, nas palavras, continuava com a mesma estranha sensação. Já a tinha visto? "És minha aluna? Como sabias onde moro?" Quem te mandou aqui? Como te chamas"
" Aproxima-te, sem deixar a miúda dizer nada, ia continuando, aos impulsos, uma pergunta seguia outra. "Espera, parece que te vi já..." Mas a rapariga conseguiu dizer "s... Anabel, a minha mãe..." E foi interrompida. "Interrompeste a minha música, porque vens aqui? Aqui estou sempre só. Eu e essa velha louca, lá em baixo, no primeiro piso."
"Deixe-me explicar, por favor. A minha mãe, escreveu-me, ela está em França, toca numa orquestra em Lion. Ela mandou-me aqui, eu vivo com uma tia. Que não é minha tia. Ela, quero dizer a minha mãe, escreveu à tia, para eu vir aqui, ter aulas consigo"
"Tens quantos anos, Anabel, dizes tu que é o teu nome?"
"Onze anos, professor. Mas se quer, eu vou já..."
"Espera..." Onze anos. Tantos quantos a sua esquecida saída, fuga, aliás, do seu país...Anabel? Seria...? Impossível...
Tremia de se lembrar. Anabel viu-o assim, e assustou-se. Estava doente? Que lhe estava a acontecer?
À próxima tentativa de pergunta...saiu a correr e desceu sem mais nada lhe dizer. Uma vez tinha visto um velhinho ser atropelado, e morrer em frente aos seus olhos...Tinha de sair dali.
O professor Vlada estava suspenso. Seria...? Tudo, subitamente, parecia passar-lhe como um filme estranho, assustador. O ruído esmagador dos tanques russos, tiros, fumo, toda a gente a fugir, desordenadamente... Ele, perdido da sua família, só gritava pelo nome da sua mulher, grávida, sem poder fugir como os outros. Mas ele não conseguia chegar a casa... e teria de fugir também. Os russos não lhe perdoariam as conspirações, as reuniões clandestinas de intelectuais, do melhor que Praga tinha, naquele tempo. Anabel?
Não podia ser...
Anabel. Lá estava. Tudo numa enorme confusão. Que havia acontecido? "Caíu como se fosse de cartão..." Ouvia dizer "que aconteceu, perguntava ela" Miúda não devias estar aqui tão perto é perigoso, ainda pode cair o resto."
"Em Lisboa é assim, está tudo velho, a cair. Eles deixam tudo abandonado. E morre gente, dizia um homem de ar irritado, ali ao seu lado" Merda de políticos, repetia.
"Mas... ontem estiva lá dentro. Com o professor que lá vive, o senhor Vla...sabe onde ele está?"
"Oh minha linda...tu conhecias o velho?" Aquela velhota ali diz que ele estava lá, quando o prédio caiu! Tu conheci...? Já ela tinha fugido...nem via bem o caminho, os olhos enchiam-se de lágrimas, a tia havia-lhe contado, do seu pai, de ser músico, de se chamar...
Correr. Correr...
A brutalidade, do tempo, do estrondo do tempo. Como em Praga, também em Lisboa.
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