Os sentimentos que nos diferenciam

Li algumas passagens do novo livro de Sousa Tavares. Considero-o um homem inteligente, com uma escrita de qualidade, não diria irrepreensível (mas exceptuando o perfeccionista Mário Cláudio, ou a inteligência superior de Herberto Helder, quantos a têm?).


É uma obra que o autor pretendeu intimista, que confessadamente, e algo timidamente, o diz. É interessante, isto do intimismo de quem escreve, e se sente como escritor, o que Miguel Sousa Tavares também nos confidencia. É interessante e algo polémico, muitos leitores nunca o aceitam. E um escritor arrisca muito ao fazê-lo. Pode denunciar algo ou muito da sua idiossincrasia. Pode deixa-lo demasiado exposto. Mas um escritor é um artista, como ele também o diz, no que concordo.

Esse é, desde já, como declaração de intenção minha, um acto de coragem. Sousa Tavares tem muito de corajoso, com muita frequência nas suas opiniões políticas e logo, bem patente, também, na sua escrita. Arrisca. Foi acusado mais de uma vez de ter baseado alguns textos em trabalho de outros, nos seus romances. Mas foi ele que tomou a dianteira e os escreveu, e fê-lo pela sua própria pena, com o seu estilo.

Constitui-se um homem de sentimentos. Sociais. Íntimos. Um eterno caminheiro pela perfeição nas relações, pelos vistos. Um eterno peregrino, pelo amor e pelo conhecimento sobre o ser humano.

Esta postura de Sousa Tavares é, pela minha forma de ver, muito adequada aos dias de incerteza que vivemos. Trata-se de um autor respeitado e julgo que isso tem muito de responsabilidade para com estes tempos e com os seus leitores. Talvez isso o tenha inspirado. Ainda não li este livro dele, e nunca me predispus a ler este género de livros. Desta vez, sinto curiosidade.

Há em todos nós sentimentos. Que nos unem. E que nos separam. Dar nota deles, é mais um acto de coragem do que uma falta de decoro. Ninguém se expõe totalmente, nem um escritor.

Mas um escritor expõe-se sempre mais do que provavelmente pretende. Talvez quem leia aprenda essas outras formas de sentir, para além das formas de pensar. É uma forma de entrar em dois mundo, pela porta de um só. Um acto de coragem de quem escreve, que serve um acto de humildade de quem aprende com isso. Ou uma confessa fome de aprendizagem, desta vez de sentimentos distintos dos nossos. Sempre achei que todos vivemos em vários mundos em simultâneo. Uma enriquecimento em si mesmo.

O que nos diferencia até nos aproxima. E também nos permite vermos melhor algo de nós próprios, que de outra forma não seria evidente. Seria pouco honesto deixar passar a ideia que é boa esta diferenciação, esta diferença, quando se trata de procurar ou assimilar o que nos surge pela frente, algo mais do que um mero relacionamento, mas uma relação íntima e sentimental forte, afinal. Nesse caso há, com frequência, um afã de encontrar pontos comuns, e pesar e comparar. Comparar sentimentos é tão só inútil se não se tornar ridículo, pelo insucesso que se prevê. O que nos une é bom, mas o que nos diferencia pode tornar-se bem mais útil e não ser forçosamente um pretexto de afastamento. Falo de sentimentos, não de gostos (o jogo dos apaixonados) ou de prazeres (o que de facto aproxima pessoas).

Interessante e decepcionante. Como durante séculos a humanidade se dedicou ao exercício da racionalidade, para hoje pensar que é a emoção e o prazer (já defendida por Epicuro, antiga Grécia e condenado, ridicularizado por católicos) que conta. Podemos, sem grande erro, ligar, com os conhecimentos actuais, inferiores seguramente aos de amanhã, ligar a impulsividade, a emoção e até o sentimento (que já é mistura) ao Inconsciente (erradamente designado por Sub-consciente). E a racionalidade ao Consciente.

O problema é que o que está presente em mais de noventa por cento da nossa actividade mental é o Inconsciente, ou seja a tendência concreta, bem real, para a emoção e o impulso ganharem ao racionalismo (como Kant e Descartes se enganaram...). É por aqui que nos tramamos todos, e nos tratamos mal. Julgamos analisar umas atitudes pela Razão e assim estarmos certos, mas tomamos decisões pela Emoção e não estaremos mais ajustados ao que é bom para nós. E o seu contrário, também será verdade. No fundo, talvez passemos tempo demais a nos enganarmos. E, como todos sabemos bem, depois de nos perdermos (a muitos níveis, já não apenas o sentimental), damos o valor devido ao ser humano que nos era mais adequado. Disto, resta essa certeza, que é dura. E a outra que o "o tempo não pára". Afinal, a dada altura da vida, tudo devia ser já mais simples. Continuo a pensar que complicamos.


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