Nós e os 'outros'


A que outros me refiro? O primeiro pensamento de quem se dá ao trabalho de me ler, deve ser de que se trata de um texto de psicologia, ou quem sabe, de sociologia até. Mas não que nesses temas não sou versado, e em muitos outros claramente, também. Filosofia pragmática talvez? A filosofia prática dos descendentes de Dewey? Na realidade, acho que queria, tão só, elaborar numa provocação a algumas pessoas conhecidas, e fazer um pequeno jogo mental, através (preparem-se ou desistam, isto é capaz de ser um tanto extenso…).

Queria com este ‘outros’ abordar uma acepção diferente do vocábulo. Este ‘outros’ seria destinado aos não humanos. Animais e plantas…

Porquê? Que nos distingue desses ‘outros’? Dos animais e de outros seres vivos? Muita coisa, evidentemente, mas talvez não tão complicado como possa parecer à primeira vista, do ponto de vista teórico. Filosófico, se quiserem. Umas diferenças essenciais é a nossa infindável capacidade de complicação. A complicação é intrinsecamente humana.

Tomemos o conceito de ‘palavra’ ou de ‘linguagem’. Não linguisticamente. No significado e na dificuldade que a ‘palavra’ nos traz. A linguagem surgiu para simplificar ou, digamos, facilitar a comunicação. Criar uma forma de comunicação com um conceito de universalidade. Mesmo que tal universalidade se restrinja a uma comunidade tribal, ou se alargue a toda uma civilização. Mas, de facto, logo após a sua ‘criação’ ou ‘invenção’, a evolução da raça humana e da linguagem só trouxeram complicação. Não à comunicação, mas ao pensamento.

Num dado âmbito, o que um dia é interpretado por uma pessoa, com a mesma ideia, desculpem-me, significado, tem para outra um significado distinto. O conteúdo, que enche o vocábulo. Se essa outra pessoa, o receptor, tiver conceitos distintos, se por exemplo for de cultura distinta, a sua interpretação pode ser bem diversa. Tomemos um exemplo de um bem conhecido acontecimento histórico. Colombo chegou à América, ou melhor à Hispaniola, hoje a ilha que se divide entre República Dominicana e Haiti, em 1492. Este mesmo facto lido por um árabe não consciente dos distintos calendários leva-o a supor que Colombo lá chegou numa data bem diferente da verdadeira, assumindo 1492 como verdadeira. Tal como a chegada de Colombo. Ou seja, o que é tido como verdadeiro, passa a ser falso. Então, daqui se concluir que a palavra, fulcro maior da comunicação entre humanos, que se quer universal, enquanto entendível por todos, já só vale não na forma, mas sim no significado. O significado é pois, a única coisa válida. E que dizer então das expressões “tem o mesmo significado” e “ tem o significado que se lhe queira dar” ou ainda “cuidado com as palavras, pois têm muito significado”. Aliás expressões frequentemente usadas sem critério ou rigor.

Os humanos distinguem-se por terem inventado a complicação. Não vale a pena lutar. Ela, a complicação existe e é a nossa essência maior. Divina. Tão divina como as divindades, que também fomos inventando, para assim ainda mais nos complicarmos a nós mesmos.

Outra enorme complicação: o Amor. Alguém já descobriu o que é? E se não descobriu, então sabe para que serve? Diz-se: Não interessa o que é, ou como se explica, sente-se. Ai sim? Então e o significado? Aqui já não se explica? Ma parece que há muitas certezas. Há quem distinga entre amor e paixão. O que me leva a supor que é porque se sabe o que os dois conceitos significam. Ou, no fundo, serão a mesma coisa. Em fases distintas e sucessivas? Mas, insisto, ainda hoje se disque e tenta entender o que é uma coisa e o que e outra. E isso, também me leva a supor que é porque, afinal, não se sabe. Mas usam-se os termos. E muito. Lá está mais uma complicação humana.
A complicação não existe no mundo animal. Irracional, claro (isto também nos levaria a uma longa discussão de conceitos). Tal como o amor. Porque o amor é uma invenção humana. E existe? Ou existe porque nós assim o queremos? O conceito, não o sentimento. E não me venham com a resposta de que são a mesma coisa. Ou então digam-me o que é, uma e outra. O conceito e o sentimento. O significado de cada vocábulo, e não o vocábulo em si. Existe, tal como queremos que exista Deus. Então amor e Deus (um qualquer, desde que exista - sabem que a simples utilização de existir pata Deus é um lapso ou limitação de linguagem? Não admira, já que a complicação é humana!) são questões de fé.

Que complicação tremenda! Mas quanto mais complicamos…mais nos afastamos da nossa essência que, entre outras coisas, é complicar. A nossa essência de humanos é complicar para simplificar. E não o contrário, como se podia supor. Depois queremos simplificar. E criamos padrões e regras. E vocábulos, como amor e deus.

Mas o que se sente existe? Ou é apenas criação, produto, da nossa mente? Uma tradução errada daquilo que observamos. Ou existe apenas o que se racionaliza? A mim acusam-me com alguma frequência, de ser muito emocional e pouco racional. Nem precisavam de estabelecer o conceito todo, já que ser muito emocional, para quem é useiro em tais análises, racionais, está bem de se ver, implicaria ser pouco racional. Uma coisa, numa escala percentual, limita a outra. Será? O que me querem dizer, e nem o sabem, é que se sou menos racional, sou menos humano. Ou seja mais animal. Mais besta, já se vê. Mas, afinal, pelo que atrás se viu, os animais não são emocionais, visto que tal implica uma interpretação subjectiva da realidade. E uma linguagem, física e mental, únicas do ser humano. Ou querem essas pessoas dizer-me que se sou mais emocional, portanto menos racional, serei menos inteligente (outro conceito que só nos trouxe problemas, dificuldades e…complicações), ou seja mais ‘burro’? Pouco analítico? Cuidado que mais analíticos do que os animais não há. Ou as plantas, mesmo. Previsibilidade. Padrões matemáticos estão presentes em toda a natureza, viva ou morta. Mas o ser humano afasta-se muito de tal enquadramento. Mas o poder emocional, ou capacidades e se quiser, é uma característica do ser humano e apenas do ser humano. Já a racionalidade, não. A emoção vem de se sentir. E claro que os animais também sentem, mas depois não são capazes de fazer a tradução em emoções, aspecto exclusivo do ser humano.

Chega-se ao subtil, mas de facto muito pouco inteligente, de dizer: “és pouco racional”. Como um quase insulto, quando na verdade, se trata e um elogio. Traduzo: és pouco animal, logo és muito humano! O que nos querem dizer, mas a linguagem não é trabalhada ao nível do significado é: controla as emoções com algum travão- a racionalidade. A parte animal. Mais segura, pelo lado das regras que se impõem na nossa vida quotidiana, social e até íntima. Ah! Bem diferente significado dos termos emoção e razão.

Foi a razão de Descartes que levou a quase tudo o que conhecemos feito pelo Homem. Descartes era inimigo da emoção, dessa faculdade de sentir e exprimir, após tradução elaborada no espaço físico entre os órgãos da emocionalidade, amígdala e outros, e o córtex cerebral, que nos distingue dos animais, e nos facilita a comunicação entre humanos. Nos permite exactamente entender os diversos significados, das diferentes linguagens, de todos nós. E permite, entendendo os outros, estes sim humanos, inserirmo-nos melhor, e comunicarmos melhor.

A razão de Descartes e outros seguidores, levou à razão da Igreja Católica, a menos emocional das instituições religiosas. E leia-se atrás o que tal significa, de mais ou de menos humano. A mesma razão, fez desenvolver espíritos militaristas, monarcas absolutistas, déspotas, e a uma tremenda estupidez humana que ainda hoje persiste. Foi a fundação institucionalizada do animalismo humano. Levou a grande e insignificantes atitudes incompreensíveis: desde decisões políticas que custaram milhões de vidas a uma simples e má aplicada palavra, dita por um apaixonado a outro, na procura não do entendimento, humano, mas do desentendimento mais animal, por uma errónea superioridade de um sobre ou outro. Na desistência de umas pessoas pelas outras. Isto tanto se vê na decisão política como nas relações familiares ou, com mais frequência, nas relações sentimentais ou amorosas.

Hoje vemos ao que levou. Quinhentos anos de decadência contínua da cultura ocidental e uma paragem inacreditável no nosso desenvolvimento como espécie. A procura da crescente complicação, onde podia existir a beleza da simplicidade.

Penso, logo existo. Pois. É bem verdade. Mas este penso de Descartes devia ser sempre visto e praticado com bem mais emoção do que razão, sendo esta a reguladora da acção. Pelo lado superior e inteligente da Emoção, e não pela ‘irracionalidade’ da Razão!

Não contem comigo para este ‘Acordo psicolinguístico’. Essa ‘horizontalização’ formatada do pensamento. Eu tenho o meu. Tenham o vosso horizonte mental, à vossa imagem e forma de vida. Ou deixem-se levar nessa corrente mortificadora, da racionalidade, e da racionalização de tudo, numa vida sem cor e sem brilho, rumo a infelicidade tacitamente aceite, e absolutamente garantida.

Talvez também à procura do que os budistas, que muito respeito mas não sigo, dizem existir, para consolo das impossibilidades das nossas vidas: a reincarnação. Como solução para tudo o que não somos capazes de conseguir ou de lutar para conseguir.

Eu por mim já me contento, com esta vida, complicada como a faço, mas bela por a procurar viver bem, e bela porque sentida, mais do que racionalizada. E contentar não é resignação, é por escolha activa e assertiva do que se quer. E se luta sempre para conseguir.

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