Despretensiosamente

 "Escrevi Chamada para o Morto, o meu primeiro romance, porque andava há vinte anos ansioso por escrever mas nunca chegara a ter propriamente incentivo para tal. (...) Numa casa sem livros, conseguira adquirir algum gosto pela leitura, em grande parte devido a um mestre de uma das minhas primeiras escolas nos lis maravilhosamente em voz alta textos de Conan Doyle e G.K. Chesterton."

Assim escreve John le Carré em 2020 na introdução à reimpressão do seu primeiro livro, Chamada para o Morto, escrito em 1961, agora publicado em Portugal (temos um culto muito "esquisito" por autores de culto, ao nível das nossas editoras não temos? Um respeito, ou uma desatenção, culturalmente pouco louvável, digo).



Le Carré, David Cornwell, de nascença, teve um pai considerado vigarista...não teve uma educação literária em casa (parece que teve mais sorte na escola) e muito menos intelectual.

Desenvolveu-se. Recriou-se. Fez-se. Considerado uma referência em literatura de espionagem ou policial, que abrange, sem pretensões, mas justamente, a literatura toda, pois as suas obras não se ficam pelo nicho em que as publicava ou a que se dirigia, era um escritor inteligente, um homem inteligente (dava um título interessante, não dava?).

Le Carré conseguiu tudo na vida, diria eu. Tudo o que mais queria. Ter o prazer de escrever textos do nada. Como se escreve "do nada"? Como se "inventa" uma boa história? E como, depois, se monta a trama, em escrita de qualidade, com a atenção aos personagens que só os inteligentes conseguem, pela observação de características únicas sobre todos, ou alguns, de nós?

Eu quis, há muitos anos, ter produzido textos, dessem ou não origem a livros. Quis antes dessa fase, conhecer. Conhecer tudo o que pudesse e conseguisse. Depois, iria filtrar, ao ritmo do meu entendimento do que me daria mais prazer e satisfação. Mas não o fiz. Não o consegui. Por isso, quando leio uma declaração de um grande escritor sobre o início da sua produção literária e das opções que tomou para atingir o que queria, tendo a comparar, despretensiomante, com os sonhos que outrora tive, daquele quarto da minha casa de nascença a que chamavamos "quarto novo" (precisamente por ser o quarto acrescentado à planta da casa, sobre a garagem aberta onde se estacionavam os carros, na entrada do quintal). Era o quarto do refúgio, onde descobri os livros, a música e os prazeres de ali estar só a descobir o mundo sem sair da poltrona. 

Descobrir autores como Steinbeck, um culto. E Camus. E tantos. Descobri compositores como Beethoven e Chopin, dois ídolos. E tinha de me sentir acompanhado no meu tempo próprio por Supertramp e Pink Floyd e outros. A música de fundo, por vezes em volume um tanto alto para propositadamente, e por puro prazer audiófilo, dificultar a concentração, e as pausas para reflectir, ali, sózinho, sobre o que no mundo havia para descobrir e até onde eu conseguiria ir.

Desse tempo, ficaram os prazeres (uma 4ª Sinfonia de Beethoven oferecida pela namorada, vinda de uma viagem a Lisboa, a capital que mais tarde eu amaria para sempre, um Concerto de Aranjuez, oferta do meu Tio Gil...A Leste do Paraíso, a Peste e o Estrangeiro e a descoberta de um mundo imenso que passava muito para além das fronteiras da aldeia Portugal) e a imparável vontade de saber. Mas fica ainda a frustração de não ter cumprido o sonho de escrever de verdade. 

Grato a David Cornwell, Le Carré, pela memória de muitos anos!

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