Esse estranho uso da esquiva capacidade criativa que todos temos

É o tempo. É do tempo. A desculpa menos convincente que nos damos, para a desistência diária de uma actividade criativa. O tempo que não temos, o que pensamos não ter e até do raio do clima que parece querer implicar com estes poucos quilos em cima dos ombros.

A activdidade de um escritor, daqueles a sério, que não se ficam por contar uma história, que nos agarra e nos põe a pensar, como será, de tão transcendental nos parece? De escritores a sério, falo de um Phillip Roth, ou de um Herman Hesse (este génio devia ter as palavras todas já feitas e organizadas em formas poéticas, em formato filosófico ou apenas prosa, mas uma que não se fica pelo apenas. Isso é para nós. Hesse devia ter um cérebro na ponta dos dedos, para além do que nós quase que temos, e carregamos aos ombros. E Steinbeck? E tantos...

Que faziam no dia a dia estes criadores desta arte de encher papel branco com contruçoes frásicas perto ou para além do transcendente? Teriam também que pensar na limpeza da casa, na lavagem do carro, no pagamento da escola dos filhos, no que teriam de comprar na loja ou mercado para comer durante a semana, ou ainda nos planos de vendas da sua empresa, ou nos processos administrativos do seu serviço? E, com tudo isso, como o teria Pessoa, ainda lhes sobrava actividade, enzimas, açúcares e tudo o resto (que é mesmo tudo) para manter activa uma parte do cérebro que a nós parece morta, ou em coma desde o nascimento?

Sobre criar, já se tem estudado e escrito que se trata de um processo construtivo e evolutivo indidividual, mas que pode e usa de toda a herança de tantos génios, antes de nós, que nunca o seremos. "Aos Ombros de Gigantes" como se intitula essa obra, gigante, de Stepehen Hawking. è assim que nos transportamos pelas ruas, com pensamentos sobre o que vemos e o que nunca vimos, com essa herança milenar, inscrustrada no nosso órgão maior (de importância) e a que Richard Dawkins chamou de memes. A herança cultural, um paralelo à herança genética. Recebemo-las sem pestanejar, porque nem sabemos que as recebemos.

Não deve haver uma acumulação de heranças de conhecimento, de capacidade intelectual e de energia criativa infinita. Mas na cadeia a que todos pertencemos, de humanos que se renovam a cada geração, essa capacidade vai-se incrementando, assim parece, cumprindo a evolução da espécie humana e contrariando o determinismo e a obscura superstição. Há tentativas de projecção do que seremos dentro de centenas de anos, e de milhares (se entretanto não nos auto-destruirmos).

Mas com esta mesma curta capacidade de pensar, como de criar, esse drama de sair do zero, ou do branco de um papel ou de uma tela, se há-de repetir por gerações em catadupa, até ao fim do tempo. Se o tempo acabar um dia.

E de tempo, para nos renovarmos e reconstruirmos, sobra sempre menos, porque é um dos parâmetros da nossa maravilhosa existência que não temos meio de controlar, ou sequer entender.

Resta-nos ir elaborando cenários e ambições, a que esses cenários nos impelem, sobre o que vimos, ou pensamos ter visto, pois agora parece também certo que pouco do que vimos será mesmo real. O diabinho do Inconsciente cá anda, bem mais alerta do que o Consciente, para nos pregar partidas. Mas, isso sim, com toda a força, podemos sempre usar do nosso engano sobre a percepção da realidade, para nos colocarmos na pele de um criador de escritas e nos elevarmos a algo que nunca antes se havia feito, e nunca nos imaginamos capazes. Afinal, parece que é tudo uma questão de disciplina, de persistência e de sabermos usar um tempo, pondo de lado futilidades, mas nunca prazeres, para que ...

...de um mero passeio pelas ruas de uma cidade, da observação dos outros, do registo de cores, ruídos, odores ou vozes e palavras, tudo numa amálgama com a experiência, vivida, lida e ouvida, nos entregarmos a essa nobre arte de juntar palavras e com elas dizermos coisas que fazem tantos outros pensar e em coisas se meterem a sentir. Porque, como dizia Kiplng, (as palavras são coisas e) uma pequena gota de tinta ao cair sobre um papel faz com milhares de pessoas, talvez milhões, pensem.

E vai de pensar e de menos usar o que outros pensaram.

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