Quando o sol...

Não é assim tão frequente, mas por vezes desperto antes do Sol. E espero por ele. Adoro a sensação da luz que começa um dia e adoro fechar os olhos voltado para ela, que se intensifica em poucos minutos. Ao fazê-lo, pensamentos que me surgem, ganham a mesma intensidade que a luz dele me quer inspirar e afastam-se planos e previsões para um dia que nem sempre se quer sequer começar. Tudo o resto, quer-se começar.

Nós somos muito mais aquilo que pensamos do que aquilo que vivemos, provavelmente. E é dessa forma que muitos se dedicam aos seus deuses, aos seus fantasmas, às suas inquietações, aos seus prazeres, grandes e pequenos, a grupos aos quais insistem em pertencer. A ideia de um deus que nos protege, a ideia de algo que nos deve orientar, que nos dará num momento que deixou de o ser, com a morte, tudo o que em vida não conseguimos e nem pensamos se para tal lutámos o suficiente, é fascinante para muitos, é uma ideia menor, ou totalmente rejeitada, para mim.

A ideia de pertencer a ideias de outros, é, em si, a atitude de pobreza intelectual mais perturbadora que se me pode assolar. Mas sei bem que essa necessidade de pertença, a religiões, a ilusões e fantasias é aconchegante, para dizer o mínimo, ou é salvadora para atingir o tipo de atitude mental que a muitos traz realização e felicidade até. Pertença a quem ou a quê? Um grupo, religioso, ou um grupo político. Um clube, ou apenas pertença a uma cadeia de rotinas diárias que podem fazer-nos esquecer problemas, ansiedades ou tristezas, nem que por umas horas até o sol se esconder de novo, ou a noite nos pesar forte nos olhos e nos entregarmos a Morfeu.

Mas, para mim, o tempo de uma vida é demasiado curto para outras realizações que me fazem sentir o que verdadeiramente sou, um ser humano que sente e que quer sentir-se viver. Com toda a intensidade que conseguir, ou a sociedade e as necessidades mais básicas me permitirem.

Quando o Sol nasce, com ele vem, de olhos assim fechados a sentir algum calor dele como promessa de conforto e promessa dessa intensidade na vida, penso em viver, sentindo. E, por isso, a minha necessidade de pertença é para com alguém que amo muito, porque promessas desse sentimento que sempre procurei, forte, preenchedor e decisivo, que faz vibrar, sentir-me ainda mais humano, vivo e intenso, por dar e receber seja em que proporção ou forma for, mas sempre com a mesma vontade de entrega, essas promessas foram-no apenas isso durante demasiado tempo. Demasiado tempo e apenas promessas. E é com o sol de cada dia, com essa mudança de coloração no céu por cima de mim, que constitui em si mais uma promessa, de mais um dia de vida, que me entrego, hoje, como ontem a alguém que me faz sentir bem, vivo e único como sinto o objecto de um amor grande, muito grande.

Se fecho os olhos, vejo-te assim, e sinto-me entregue ao que de mais valioso uma vida pode conceber. Se os abro, vejo um espaço em volta, onde não te vejo. Mas sinto na mesma, e sinto-me feliz por sentir e seres essa promessa. Mas és uma promessa viva e pulsante, não uma ideia, uma fantasia, ou uma criação puramente mental.

E tantas vezes quero viver assim, intensamente, como se sentisse o efeito da água quando escorre pelos dedos e não se consegue reter, que me excedo, quando me devia conter. E a promessa de me sentir bem, por ter tanto querer que te sintas bem, se perturba ou pode ficar abalada por exageros e falta de bom senso ou de razoável serenidade. Mas é essa falta que pode trazer perturbação a uma segurança e serenidade que tanto se quer.

É a isto que vale mesmo a pena pertencer e saber pertencer. Não a uma ideia vaga, uma filosofia, uma religião, sempre uma qualquer fantasia que nos afasta das pessoas que devíamos amar, em vez de delas nos aproximar. A entrega a algum grupo pode trazer outros benefícios ou prazeres, mas nunca o mesmo que um amor mesmo grande e único nos dá. E é de dar, ou seja de receber e de dar de novo, que se trata e com isso todo o prazer de uma vida em poucos minutos se pode sentir. A procura de uma felicidade pode fazer-se por pequenos prazeres, por apego a grandes ideais. A felicidade em si, que não sabemos o que dura, não tem nada a ver com a sua procura. A felicidade pode chegar mais fácil pelo imaterial e pelo nunca demonstrável. Não é um caminho difícil e uma entrega. É render-se sem esforço e sem luta a algo que não passa de uma criação interior. Mas pode trazer felicidade a muitos e sei que traz.

Mas, para mim, nada que se compare a esse abraço e esse beijo que nos dá vida como nada mais. Ou nada como, serenamente irmos vendo um filho a crescer e lhe irmos dando esta mesma vontade de viver, e com a mesma intensidade e com a mesma liberdade. Viver e sentir, na pele, no odor, comprovar com a visão, ter pela frente o mais lindo sorriso do mundo, de um filho, de quem amamos, é uma escolha, essa sim sempre mais difícil pelos enganos a que nos entregamos sem saber, pelos erros que cometemos, pelos desvios enganados na vida que nunca quisemos acontecessem e eles fizeram mesmo parte da nossa história. Não é fácil saber encontrar. E saber manter, ainda mais difícil. Mas vale tanto a pena.

E mesmo que o sol chegue forte, não é ele o sol que quero. É um outro, que é sol ou é lua, mas que é sempre algo a que quero mesmo pertencer. Esse é o sol que quero sempre que chegue e que ainda que não o veja claramente, sei bem que está lá.

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