Determinismo

“Se tiver que acontecer, acontece”. As vezes que ouvi isto… 

Sempre que ouvi alguém me dizer que as "coisas acontecem, se tiverem que (de) acontecer”, senti-me ou incomodado ou, normalmente, incrédulo, quase com uma reacção alérgica. Hoje acordei com esta na cabeça. (“tenho de escrever mais alguma coisa sobre este determinismo”). 

Quando revejo os momentos em que tal ouvi, julgo ter percebido que se tratava de uma frase de "saída", de fim de conversa, algo para dizer "deixa andar e logo vês", uma quase estratégia mental para desviarmos o pensamento de qualquer coisa muito preocupante ou que nos entristece, e nos atingiu "lá bem fundo".

Não me recordo de ter ouvido algo deste género, quando o assunto tinha a ver com trabalho, ou com acontecimentos sociais, ou políticos. Penso que quando ouvi, era dirigido a alguém que falava de um assunto pessoal, um problema de família, com a família, ou sentimental.

E interrogo-me porque razão acham as pessoas que existe mesmo um determinismo assim para os assuntos pessoais, sentimentais ou outros, e não para temas sociais, por exemplo. "Deixa estar, se tiver que acontecer, acontece o Governo subir o ordenado mínimo", "deixa estar, se tiver que acontecer, acontece, a Europa perceber que em vez de austeridade, deve dar outro apoio no sentido da convergência e não da desigualdade", ou "deixa estar, se tiver que acontecer, acontece, levarem finalmente o Sócrates a ser julgado".

Não me parece também ter ouvido "deixa estar, se tiver que acontecer, acontece, darem-te aquele emprego". Mas há uma mais interessante: "deixa estar, se tiver que acontecer, acontece, sair-te o euromilhões". Pois...

O que tiver que acontecer, somos nós que fazemos com que aconteça. Ou então, assumimos a nossa incapacidade. Ou usamos a dita frase para "sacudirmos a água do capote", ou desviarmos o assunto de uma conversa.

Também há uma entrega, com esta frase, pensamento e atitude: entregamos a um poder superior, divino, a um Deus, a resposta, o resultado. Entendo que numa religião existam muitas espécies de determinismos. Mas não entendo uma espécie de resignação, uma entrega mesmo a um caminho de aceitação, ainda que seja de tristeza e infelicidade. Eu nunca aceitei para mim mesmo este "deixa estar..." por entender que tenho de intervir, ou intervir com alguém para fazer acontecer as coisas. E não se trata de "retirar" intervenção a um poder divino. Trata-se de usar a nossa convicção, e a nossa capacidade toda, para actuarmos na nossa vida, ou na de alguém. E não falo apenas de assuntos do coração. Passa-se o mesmo quando se trata de procurar uma reconciliação familiar, após um desencontro, uma desavença. Ou de "fazermos ver" um determinado ponto de vista a alguém, um familiar, um amigo. 

Há, com certeza, sempre, um momento em que não podemos e não devemos intervir, em situações em que até achamos que temos de fazer alguma coisa. Há também um momento para desistir de alguma coisa. Mas aceitar muita coisa, tantas vezes na vida com este determinismo na cabeça, parece-me um desperdício de recursos, pessoas e oportunidades. Tem isto a ver com o que há dias escrevi sobre escolhas, decisões, capacidade de se entenderem sinais nas diversas situações. Lembro-me de algumas delas,  em que alguém sugeria, na família, algo deste tipo: "não digas mais nada, deixa andar...ele (ela) vai ver pelos seus olhos" (tinha de ser pelos olhos...ou não, porque este "ver" não é mesmo com os olhos e é ainda mais difícil de lá se chegar). Foram situações de tensão dentro da família, casos de desentendimentos entre irmãos, de gente que não está já por cá. Mas entre amigos, também ouvi muito disto. E, de cada vez, um fluxo de incompreensão e de descrença se me afluiu. 

Não, de facto não me parece que assim seja. Devemos fazer acontecer as coisas. E já de si, corremos riscos. Mas até sabemos que o fazemos e as frases em causa, servem-nos de despiste, a nós e a outros. As coisas acontecem porque as fazemos acontecer, e nem sempre conscientemente. Ou acontecem porque não as fazemos acontecer, precisamente. Ou ainda, muito frequentemente, porque não as conseguimos fazer acontecer.

Temos normalmente vários caminhos, e uma escolha. Em escolhas profissionais, provavelmente poucos caminhos e quase nenhuma escolha. Ou em assuntos de trabalho, estamos como em tantos outros pessoais, vários caminhos, uma ou mais escolhas. Mas só se opta por uma, claro. Ao escolhermos um caminho, e estamos a fazer acontecer, a outra ou outras, deixam de poder acontecer, pois o caminho foi outro. Entramos por um e não sabemos o que o outro tem lá para nós. Não será então legítimo que as "aconteça, se tiver de acontecer", ou "se não acontece, é porque não tinha de acontecer". Escolhemos nós, ou mesmo alguém por nós. Muito normal em situações de trabalho, por exemplo. E também em algumas situações profissionais. Mas um dia destes me diziam isto em relação a uma situação profissional...e chocou-me. Ocorreram-me então tantas outras, de cariz pessoal. 

Não acredito mesmo em determinismos de espécie alguma. Somos nós, humanos, que fazemos coisas, e nós que damos este nome de coisa, ás coisas...porque somos os autores e actores até já não termos mais capacidade de representar a nossa vida. Aí, a nossa eventual passividade é outra escolha e outra intervenção nossa. Fiz tantas más escolhas e fiz acontecer, mesmo que não sozinho, o que depois não queria que tivesse sucedido. De cada vez que se me apresenta (outro pensamento de que duvido "se me apresenta"...ou fiz eu que com que me surgisse?) uma situação de muita relevância, procuro empenhadamente fazer acontecer. Em tantos momentos num contexto de trabalho, ou situações de vida privada. E algumas vezes consegui, não sei fazer o balanço do que me parece ter sido fruto mais da minha intervenção do que da de alguém, mas sei que o "nada é por acaso" também...não foi o caso. O "tudo tem uma razão para ser e acontecer" é outra forma de determinismo, difícil de aceitar. Nem tudo terá, parece-me. E talvez existam muitos mais "acasos" do que julgamos haver. Mas houve sempre uma intervenção, e provavelmente foi humana, não questiono se a houve de algo divino. 

São posturas, todas aceitáveis, obviamente. Para imensa gente, sempre haverá o seu determinismo de eleição. Tão legítimo com a recusa dele, por outras pessoas. 

Eu, pessoalmente, prefiro sentir que intervenho. Mas sei que muitas vezes não o devia fazer. Ficando então a duvida se deixar acontecer ...é uma boa "escolha". Mas é deste misto de opções e ausência delas de que é feito o nosso trajecto. E por isso temos outra máxima, que me custa reconhecer de que " vida é dura e difícil", mas em momentos de susceptibilidade e menos força, ainda que sem baixar completamente a cabeça, também me resigno, temporariamente, a esta fatalidade das coisas. E continuo a combater a fatalidade e o Destino. Volto sempre a regressar a escolhas e opções, que têm embatido em realidades que me ultrapassam (fatalismo?) ou que me regozijo de as conciliar com alguma coisa ou alguém. 

Por opção, e por princípio, determinismo, fatalidade, resignação...gosto de afastar do meu trajecto. Mas tudo é legítimo e..."pode acontecer" 



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