Memórias da Casa das Anonas-1



Nos dias de ócio, forçado, em cuja fútil existência se sentia por vezes a passear, sentava-se o mais perto da janela que conseguia. Era onde mais próximo das luzes e até dos sons, do passado, se podia deixar transportar. À janela, ou sentado a pensar, a ler ou escrever e a olhar a rua através dela, conseguia quase dar o salto que o levava a um passado, onde não pretendia regressar, mais pela atitude pela qual gostava de viver, de experimentar cada minuto do seu presente, e dele espremer todo o seu bem estar, do que pela nostalgia desnecessária e deprimente, talvez, que esse passado o podia deixar. As viagens ao passado que o seu tempo infinitamente cansativo actual lhe permitiam, eram-lhe caras, eram visitas a um tempo bom, calmo, doce e sereno, em que todas as sensações então vividas lhe chegavam com o sorriso que atirava à rua que o via assim, à sua janela, contemplativo, mas num lugar certo e seguro, de há muitos, muitos anos...

Naquele ‘quarto novo’, como lhe chamavam os da sua família, por ter sido construído muito depois da casa grande inicial, um quarto grande que lhes servia de sala de estar, e se separava dos demais da casa, por se situar por cima da antiga entrada da casa e passagem ao quintal, havia vivido alguns dos seus momentos de maior reflexão, que, estava certo, muito tinham contribuído para fazer dele a pessoa que hoje era. Ali, de porta fechada ouvira as primeiras composições de música clássica, que o levaram a novas sensações e novos mundos, a um outro salto no passado, não o seu, mas os de quem havia criado tão elaboradas como encantatórias melodias. Essas mesmas músicas que, desde esses tempos o iriam acompanhar para sempre, e para sempre o mergulhariam em experiências de exploração mental, de procura de respostas, de encontros com outras culturas.

Nesse quarto, onde tantas e tantas vezes se encontrava sozinho, com a sua música já então preferida, os seus livros, que a si mesmo se exigia ler, porque ler era não apenas um prazer, mas uma autêntica e marcante escola. Um percorrer de outros mundos ainda, de outras vidas, e de distintas formas de escrita. Os livros por onde aprendeu mais de metade do que sabia, mais de três quartos da sua vida.

Lembrava-se, desde esta sua janela, do início do Outono, já as aulas iniciadas e após chegar a casa, à tarde, de todo o tempo que com todo o prazer que conseguia canalizar, se ia refugiar no ‘quarto novo’. Onde podia olhar o seu quintal e se comprazer com o sol a penetrar, teimoso, por entre as folhas das anoneiras, cada raio de sol a querer ir até ele, e em consonância com as palavras que ia lendo, com os compassos de uma sexta sinfonia do compositor que mais venerava. Cada raio de sol a fazer melodias de vida com todo esse mar de experiências que o haviam moldado.

Quase podia sentir o cheiro da terra molhada ao abrir da janela, dessa terra, da sua terra natal, que se misturava com o das anoneiras, uma árvore frondosa, imensa, que tinham deixado crescer com vontade própria, e esbarrava o ramos da sua imensa copa na janela das traseiras daquele quarto. Já Beethoven ia no terceiro andamento da sua ‘Pastoral’, quando foi desperto pelo toque do telefone e regressou ao tempo de hoje, onde a rua fria e cinzenta o fazia agarrar-se a outras leituras, embrulhado numa manta, qual velho nostálgico, o cão a seus pés, os saltos da Truta de Schubert a leva-lo por terras germânicas, e Orhan Pamuk a ensinar-lhe, com a sua escrita bela e perfeita, sobre o mundo de uma Turquia de há quarenta anos.

Os dias de hoje são apenas diferentes dos de então, mas não são piores, pensava. Não têm o cheiro das anonas caídas por terra com o vento do Outono, mas têm o sabor adocicado de alguma sabedoria que, com os anos, conseguira arrecadar...


Os dias de hoje tinham de lhe dar a mesma paz que em tempos julgou existir. Os sonhos esses teria de os substituir. Mas hoje, a paz vinha-lhe, ainda, de alguém que o ajudava a senti-la, junto com sentimentos fortes e de pertença, como julgara já não ser mais possível. Os dias de hoje, esperava, desejava, iriam trazer-lhe outras sensações, outros mundos e vidas, e após este Outono frio e sombrio, não apenas do clima, o sol voltaria, agora por entre as agulhas dos pinheiro, com outros odores, mas sempre o mesmo Sol.

Comentários

Anónimo disse…
Gosto, está bem escrito e com uma descrição mt realista. continua!

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