Os loucos de Lisboa


A manhã começou suave e doce, e fresca e límpida, desde o trajecto de comboio até Lisboa, ao autocarro que me levou ao Largo do Rato. Suave e doce, ainda sem a cafeína que se costuma impor matinal e diariamente, uma dependência que, por enquanto, a sinto pouco prejudicial, e que me acalenta a alma no seu amargo quente ...

O Allegro do belíssimo Trio K502 de Mozart, aquecia-me o ouvido e enchia-me o espirito de coisas boas, enquanto me deliciava com o sol que batia nas lindas fachadas setecentistas da baixa lisboeta, junto ao Cais do Sodré, ou Praça Duque da Terceira. O autocarro parecia assim flutuar pelas notas aveludadas daquela música redonda e envolvente que noz transporta para outras esferas do pensamento e nos protege de pensamentos menos positivos.

Ao passar na rua da Misericórdia, já o rádio do telemóvel ia noutra fantástica obra, a primeira Partita de J.S. Bach, para violino solo. Uma música que nos aproxima 'dos deuses' ainda que eles possam nem existir. Uma música untuosa, que nos abraça e nos faz sentir menores, perante a sua beleza e suprema perfeição.

Antes da paragem do Largo da Misericórdia, um tresloucado decidiu iniciar o seu dia e o dos outros com insultos e impropérios a uma senhora de idade que denotava dificuldade em se deslocar para a parte posterior do autocarro...

(aos berros e num tom misto de insulto e de gozo, irritado com o seu mundo e, pelos vistos, com o dos outros)... "sai-me do caminho, velha do c... que fazes aqui? já devias era estar em casa...e não vir atrapalhar os outros!"

Ao responder a alguém que o interpelou, ainda se excedeu mais, com a mais profícua substantivação às partes íntimas de senhoras e senhores... só se acalmando quando alguém lhe lembrou que havia crianças a bordo, mesmo ao seu lado, mas regressando à sua loucura, consciente, e de estimação, assim que saiu para a rua.

São os 'loucos de Lisboa', neste caso com minúscula, para não desmerecer os autênticos, da "Ala dos Namorados"?

Gente que já não tem algum controlo emocional, nem o mínimo de complacência com a decência...dos outros, que seja. Perturbados e desequilibrados, descompensados sociais, para quem já nada importa, nem o seu mínimo entendimento do que fazem a si mesmos, nem uma escassa noção do mundo em que vivem, e que não se encontram sozinhos nele. Se genuína a sua loucura social, onde acabam pessoas assim? Num grupo de terapia, ou apanhados numa onda de marginalidade? Vítimas voluntárias da loucura maior de um outro qualquer tresloucado, ainda mais arrojado ou fisicamente mais pujante? Ou tudo não passa de um simples 'golpe de encenação teatral', do pior gosto que se possa imaginar?

Ou será pura delinquência?

Um amanhecer aveludado com um sol branco e forte como só Lisboa sabe oferecer, logo perturbado por esta 'cena' de trapos sociais, de uma manta psíquica que cada dia se vai desfazendo em algumas cabeças mais fracas...

Comentários

Anónimo disse…
Um bom naco de prosa descritiva e fluente.
Haja tempo que sobre, veia e momento de inspiração para dar continuidade aos escritos, ao sabor etéreo da classica música.
BPG
Obrigado pelo comentário. Espero ter o tempo que gostaria...e que não falte a 'veia' necessária.

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