A Festa


Hoje, deixo-vos um belíssimo texto, lido pela autora, Aline Bazenga, numa Rádio no Funchal, que conta boa parte da vivência da minha infância, da minha família e da "Festa", do Natal, na minha ilha.

"Uma cereja no Outono, o nariz molhado em molhinhos de Junquilhos, sentada nos degraus, entre os poios.

Cheira-se a Festa a chegar.

De lálem, no Lombinho, sinais da matança no ar.

A do Francisquinho, no meu Lombo,

Senhor Francisco dos Armazéns,

será no Domingo que vem – pensava eu,

com os meus botões.

Estive lá.

Os homens, contentes, do lado de lá,

à volta do porco deitado, já quieto.

Do lado de cá, as mulheres.

Com elas provei o primeiro petisco do porco.

Sabia a morcela sem ser,

e misturava-se a lasquinhas de bacalhau,

de mais apetecer.

Naquele ano não seria na padaria.

O primo Alcino tinha um forno para estrear.

E foi a calhar,

para os meus primeiros bolos também.

E a receita?

A tia dizia – a da avó é a melhor.

A prima Gilberta, que não.

A da sua mãe sim, essa sim, a melhor,

e levava cerveja preta.

De papel na mão, lá fui.

(Do tempo da avó Bela, o avô –

era quem fazia estas compras.

Comprava tudo na Manteigaria União,

colada à Havaneza de ainda hoje,

indo pela Condessa,

até quase ao pé do Semeador, arrumado ali na Câmara,

era onde era - contou-me o pai.)

Na rua do Carmo, à frente do balcão e de lista na mão. Cidra, cravinho da índia, cravo da acha, erva-doce, nozes, amêndoas, canela, noz-moscada,

em pedacinhos de gramas, pesados de colher na mão.

Tudo ali.

A banha e o mel de cana. As laranjas e a raspa de limão.

Na banheira verde, misturei tudo,

amassando esperei, velando,

o tempo da massa crescer.

Seria a massa da avó Bela,

da prima Gilberta,

e agora a minha. Sem cerveja preta.

Junto do forno novo, entre broas de mel e licores,

as fornadas rosando o ar,

a mesa grande a compor-se.

Os nossos bolos a juntarem-se,

embrulhados em papel vegetal,

até serem um sobre um, como num tabuleiro de damas.

O ar doce de todos,

o ar de ficando juntos. Na travessia para a Festa.

Os bolos molhados de memórias –

a avó, as tias, as primas e primos e eu fazendo parte deles,

com as minhas mãos de amassar,

embrulhar,

partir com as mãos de dar.

Os bolos daquela Festa.

Não há melhor bolo de mel que este - também vou repetir, até ser avó um dia.

(E cá para nós, em segredos, ouvi dizer

que ainda hoje no Funchal há uma mercearia,

lá para os lados da prima Gilberta,

onde os bolos de mel são os da avó Bela,

e já eram da avó dela)."

Aline Bazenga

Comentários

Anónimo disse…
LINDA MENSAGEM!!! CHEIA DE SENTIMENTOS E GRANDES MEMÓRIAS!!!

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